SÓCIO-FUNDADOR DA UMI SAN, CONTA SOBRE EXPERIÊNCIA NO MAR

O Comte Airton Antonio Rodrigues, Hidrógrafo e sócio fundador da UMI SAN, publicou um artigo descrevendo uma das muitas epopeias vivenciadas em sua viagem de Guarda Marinha.

Movido pelo desejo de homenagear dois grandes amigos velejadores que estavam a bordo do VO Cisne Branco durante os nove meses de viagem, elaborou um artigo que será publicado na Revista do Clube Naval. “Procurei levar ao conhecimento de todos alguns fatos ocorridos conosco durante o final de outubro e o início de novembro de 1980 e estabelecer um parâmetro entre as lições que aprendi nessa época e como as aplico ainda hoje na minha carreira profissional”.

Em um texto atual, com linguagem executiva, o artigo é uma ilustração prática da grande capacidade que os “homens do mar” tem de enfrentar os desafios, o que deve estar na essência de cada marinheiro, pois no mar não há “Posto Ipiranga”.

A descrição é muito interessante devido ao seu foco no caráter marinheiro, na análise de aspectos de liderança e também por demonstrar que um bom planejamento é sempre imprescindível, mas que a capacidade improvisação não deve ser negligenciada no objetivo maior que é o cumprimento da missão.

Em quase 20 anos de existência, a UMI SAN tem buscado conhecer o mar e, assim, fazer-se “boa de mar”, além de incentivar a iniciativa e os talentos de jovens que de colaboradores se tornaram sócios, garantindo a perpetuação da empresa. Outro fator primordial é fazer dos desafios diuturnos o seu principal combustível, buscando, na execução da missão assumida, o lenitivo para os muitos revezes do caminho.

A Umi San compromete-se em sempre garantir aos clientes a melhor consultoria, o melhor projeto, o melhor levantamento, enfim a melhor solução, mas, principalmente, uma amizade leal.

O artigo na íntegra você confere abaixo.

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Depois da sopa a solução aparece…

“In Memoriam” do Capitão-de-Mar-e-Guerra Érico
José Cavalcante de Albuquerque, desaparecido no mar
em 1988 e do Capitão-de-Mar-e-Guerra (EN) (RM1)
Abraham Lincoln Freire Rosemberg, falecido em 2017.

Aconteceu no final de Outubro e inicio de Novembro de 1980, há poucos dias deixáramos Las Palmas localizada na bela ilha de Gran Canaria, Arquipélago das Canarias, retornando ao Brasil e o nosso velho barco seguia firme, ansioso por mar aberto, por vento forte que lhe fizesse cantar os brandais, por ondas que lavassem o belo convés septuagenário.
Era o antigo Veleiro Oceânico FORTUNA II, construído no Estaleiro A. Robertson, Escócia, em 1910, casco de madeira com 22 metros de comprimento, 4,5 metros de boca, 240 metros quadrados de área vélica e 3,10 metros de calado, outrora expressivo campeão de regatas dos mares europeus, que foi doado, sem condições de flutuação à Marinha do Brasil pela Ferrostaal, reformado no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e renomeado Veleiro Oceânico Cisne Branco.

vo cisne branco retornando ao rio
VO Cisne Branco retornando ao Rio após nove meses de viagem

 

cisne branco proa
VO Cisne Branco vista da proa

 

popa
VO Cisne Branco vista da popa

 

velinho valente
Velhinho Valente…

 

Seguíamos nele, 12 recém-promovidos Segundo-Tenente, a seguir nomeados com seus respectivos apelidos: Rosemberg (Berg) falecido precocemente em 2017, Nazareth (Bocão), Paula Pinto (PP), Souza Neto (Zezéu), Santos Moreira (Bode), Antonio José (Ceguinho), Odon (Bela); Cruvello (Juquinha), Esteves (Stive), Ventura (Xulipa), Guaurino (Tamba) e Airton (Bilola). Seguíamos felizes pelo retorno à nossa pátria, ansiosos para rever parentes, noiva, namorada, após mais de 8 meses de Viagem de Instrução a bordo do VO Cisne Branco, barco antigo projetado para regatas curtas e onde não tínhamos nenhum conforto, pois dispúnhamos de oito beliches de lona para 2 tenentes, ou seja 4 sempre estavam de serviço e quando deixavam o serviço ocupavam o beliche de quem assumiu, 1 único vaso sanitário para 14 tripulantes, nenhum chuveiro e banho só de chuva.

Seguíamos tristes porque a aventura se findava, porque nos separaríamos, embarcaríamos em navios diferentes, nos aperfeiçoaríamos em atividades diferentes e teríamos carreiras diferentes, sempre seríamos unidos, como na verdade somos, mas viveríamos separados. E já sentíamos saudades de nós mesmos, dos portos que visitáramos, dos momentos de risco que vivêramos, de catar peixe voador a noite no convés para comer de manhã, de ser isca de tubarão (pular no mar segurando um cabo e ser rebocado), de subir no mastro, de acordar de madrugada para rizar a Grande e trocar a Genoa, de mergulhar nas ilhas e matar peixe, de baixar estrelas e calcular a posição do barco, de navegar em lugares desconhecidos, de consertar o barco em todo porto, de regular as velas para andar o máximo, de peiar toda tralha para mau tempo, enfim de todas as vicissitudes que amávamos e nos moldaram em oficiais da Marinha do Brasil.

O barco era comandando pelo saudoso Capitão-de-Corveta Érico, renomado oficial hidrógrafo que tinha também a atribuição de nos tornar aptos na prática da navegação, principalmente astronômica, nos orientar nas lides marinheiras, bem como complementar a nossa formação da Escola Naval. Esse grande amigo e mentor, meu padrinho de casamento, faleceu em 1988, quando foi arrastado por ondas enormes do convés de um veleiro que ele conduzia do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, sob forte vento sul correndo com uma frente fria, seu corpo nunca foi localizado.

comte erico
Comte Érico, o barco e o mar…

 

Nessa viagem não houve a designação formal e oficial de um Imediato, cabendo ao segundo oficial mais antigo exercer essa função na ausência do Comandante e este oficial era o Médico de Bordo, o Capitão-de-Corveta (MD) Alves (Doc), excelente ortopedista, muito experiente e competente em exercer a medicina com poucos recursos e com muita maestria, era também um exímio pescador submarino e fissurado como nós pelos peixes e pelo fundo do mar. Mas sua principal missão era nos consertar, como foi registrado na foto abaixo e tentar nos impedir de nos quebrarmos.

queixo
Doc costurando o queixo do Bilola no convés com o barco adernado

Também compunha a tripulação o Sargento Carvalho, que fazia o melhor escabeche de peixe que já comi e era especialista em fazer funcionar tudo que não fosse movido pelo vento e o Marinheiro Benjamin, especialista em cozinhar para famintos, sem muitos ingredientes, num espaço mínimo, permanentemente inclinado e com apenas uma das mãos (com a outra se segurava onde podia).

Todos nós, tripulantes do velho barco, éramos os pioneiros na Marinha do Brasil numa aventura revestida de muito simbolismo e para a qual o Comte Érico empenhou corajosamente a sua carreira junto ao então Ministro da Marinha, o sábio e saudoso Almirante-de-Esquadra Maximiano Eduardo da Silva Fonseca, que foi levar e trazer
doze recém-formados Guarda-Marinha, jovens que iniciavam sua carreira, numa travessia do Oceano Atlântico, a bordo de um veleiro de setenta anos. Travessias desse porte à época eram efetuadas por experimentados navegadores a vela em embarcações maiores e cheias de recursos (como o legendário Comte da Marinha Francesa Eric Tabarly e seus Pen Duick) ou por doidos que se aventuravam, às vezes em barco pequenos (como Bernard Moitessier e seu Joshua). O nosso caso não casava com nenhuma das hipóteses acima, representávamos a Marinha do Brasil, usando os parcos meios disponíveis e demonstrando ao mundo que tínhamos raça, determinação e competência para a tarefa, este era o simbolismo de nossa empreitada, contribuir para o desenvolvimento da mentalidade marítima num povo que, apesar de dispor de uma costa imensa e de vias navegáveis interiores do mesmo comprimento ou maiores, em sua maioria tinha e ainda tem uma percepção muito tacanha da importância de suas águas. Fomos, portanto, os pioneiros na Marinha do Brasil, a fazer, numa Viagem de Instrução, a travessia do Atlântico a bordo de um veleiro de pouco mais de 20 metros. À época somente o nosso líder tinha a correta percepção da importância desse feito e, provavelmente movido por essa percepção, assumiu a missão que o afastou da esposa e dos dois filhos pequenos por nove meses e o expôs a tantos riscos e reocupações principalmente porque precisava nos frenar, pois que para nós não existia o perigo, o que nos movia era o desejo de aventuras, sentir o vento nos impulsionar, conhecer novos portos, novas ilhas, afrontar o mar.

Hoje, com os avanços tecnológicos disponíveis e com o desenvolvimento da navegação, o feito parece simples e corriqueiro para alguns, mas enfatizo que tudo ocorreu no primeiro ano da década de 1980, tendo sido iniciados os preparativos em 1979, nessa época não existia GPS para definir a posição no mar e usávamos o sextante para medir a altura dos astros; não dispúnhamos de cronômetros a quartzo (para o cálculo da longitude) e usávamos os antigos a corda, aferido com sinais horários via radio (como a radio relógio); não dispúnhamos de calculadoras eletrônicas portáteis e usávamos as Tábuas para Navegação Astronômica para os cálculos; não existia comunicação por satélite e usávamos o radio amador do Berg; enfim muitos recursos náuticos, corriqueiros hoje, não estavam disponíveis àquela época. Nas fotos abaixo busco apresentar toda a tripulação nas lides diárias a bordo:

1
Da esquerda para a direita: Bocão, Carvalho, Bilola (no leme) e Zezéo

 

1
Da esquerda para a direita: PP, Tamba (comendo), Juquinha (no leme) e Bode

 

4
Da esquerda para a direita: Ceguinho e Bilola (no leme)

 

2
Da esquerda para a direita: Xulipa, Bilola e Stive

 

6
Da esquerda para a direita: Bocão, Doc (no leme), Xulipa e Bela

 

7
Da esquerda para a direita: Doc (lendo atrás do mastro da mezena), Bilola (no leme) e Comte Érico

 

8
Da esquerda para a direita: Stive, Bocão, Bela (no leme) e Zezéo

 

3
Da esquerda para a direita: Bela, PP, Juquinha e Zezéo

 

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Nossa Escola Querida, nossa origem, nosso líder e nosso barco…

Antes do transporte aéreo qualquer ato diplomático em países separados pelo mar dependia do transporte marítimo e os oficiais da Marinha do Brasil sempre foram treinados a exercer atividades de representação do Brasil nos países visitados, isso faz parte da nossa formação e no Cisne Branco não poderia ser diferente, éramos escalados em muitos portos a representar o Brasil em cerimonias, nas fotos abaixo registro alguns desses momentos:

11
Da esquerda para a direita: Xulipa, Benjamin e Bela, numa missa em agradecimento à travessia do Atlântico na Ilha de São Miguel, Arquipélago dos Açores.

 

12
Da esquerda para a direita, na frente: Bode, PP, Bilola e Tamba, atrás: Carvalho e Benjamin, numa representação em Organização Militar.

 

13
Da esquerda para a direita: Bela e Doc, em recepção na casa do Consul do Brasil em Las Palmas.

Mas, voltemos ao mar, onde estávamos logo depois de deixarmos as Canarias… Ainda tínhamos pela frente uma travessia do Atlântico, com seus humores e caprichos e, como já havíamos aprendido, nele tudo pode mudar num piscar de olhos. E mudou… O vento não era forte, navegávamos numa orça folgada, as ondas apenas acarinhavam o velho casco de carvalho e de repente rompe-se o eixo da roda do leme, que contém a coroa dentada dos gualdropes, acabou o leme, acabou o governo. Ficamos à matroca.

Mas, precavidos, dispúnhamos de uma cana de leme que gurnia direto no eixo do leme, a conexão era feita pelo convés na popa, a ré do cockpit, através do encaixe da fêmea quadrada da cana no macho quadrado da extremidade do leme que faceava o convés. Como o leme ficou sem a redução, era excessivamente pesado, afinal era um barco de mais de 20 metros e para conseguir governar manilhamos um aparelho de laborar em cada olhal da cana do leme e em cunhos de cada bordo e passamos a governar atuando no tirante do aparelho de cada bordo como mostram as fotos abaixo:

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Cana de leme

 

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Stive governando o barco com cana de leme, com ele na foto da esquerda para direita Xulipa, Bilola e o saudoso Rosemberg (Berg).

 

Xulipa governando com cana de leme.
Xulipa governando com cana de leme.

 

5
Ceguinho governando com cana de leme.

Estabelecemos o rumo para o Arquipélago de Cabo Verde onde efetuaríamos os reparos e algum tempo depois, o encaixe da cana no eixo do leme não resiste e se parte também. Agora, novamente à matroca, realmente tínhamos um grande problema… Mas também tínhamos um grande líder, sereno e sábio, o saudoso Comte Érico nos orientou a ajustarmos as velas para tentar manter o rumo sem leme, enquanto buscávamos uma solução. Ficamos matutando com o comandante em como resolver o problema. O sol se punha e lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, ouvi-lo dizer: “Vamos tomar a sopa que depois a solução aparece”. A sopa era o nosso jantar, um “requintado consomê” de sopa desidratada, servida quente onde púnhamos um ovo cru e algum queijo, quando havia.

Tomei minha sopa sofregamente, pensando no nosso problema, ao acessar a escada para o convés reparei que o Comandante não estava no camarote de popa. Então ele só podia estar no convés e ao subir não o vi e perguntei por ele. A resposta abafada veio do compartimento sob o convés onde ficava a meia lua dos gualdropes: “Bilola, desce aqui” enfiei-me no buraco como pude, no bordo oposto ao do Comandante e evitando os seus muitos pelos e suor e recebi dele a instrução: “Você pega aqueles tarugos de aço que comprou sem saber para que e amarra bem forte nos raios da meia lua cruzando na saída para o convés, enquanto isso, nós vamos abrir um buraco para os tarugos passarem para o convés.”

Entendi no instante, íamos fazer um leme de fortuna genial, atuando diretamente no eixo do leme e impossível de se partir, corri para buscar ferramentas, os tarugos e pensei: “só falha se o nó ceder” e cabo de nylon vai ceder com a alavanca e o esforço continuado, mas lembrei-me de um rolo de cabo de aço inox muito fino e flexível e encapado com PVC flexível e transparente que eu havia comprado também sem saber para que. Aço não cede, ia dar certo e deu…

Enquanto isso o pessoal abria um rasgo na bela madeira envernizada do banco do timoneiro (deu dó) para passar os tarugos de aço, e lançava ao mar todos os souvenires arqueológicos que havíamos obtido mergulhando em Cádiz (restos de ânforas fenícias, gregas e romanas) e estavam armazenados exatamente no compartimento da meia lua, atrapalhando o acesso (lamentamos a perda). Desimpedida a área e aberto o rasgo, fiz a cosedura mais firme que pude, formando uma arreatadura unindo os tarugos e os raios da meia lua, para tal usei toda a Marinharia que conhecia e que ainda ia aprender, prendi as peças juntas com voltas falidas travando com cotes sempre usando macete para manter tensão e… manteve…

Depois no convés, travamos as duas extremidades do tarugo com uma tabua, amarramos os aparelhos de laborar em cada tarugo e no cunho de cada bordo e novamente passamos a governar atuando nos tiradores, como apresentado nas fotos abaixo:

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Leme de fortuna

 

Bilola governando com leme de fortuna, na foto a esquerda Xulipa e a direita o saudoso Berg.
Bilola governando com leme de fortuna, na foto a esquerda Xulipa e a direita o saudoso Berg.

 

3

Bode governando com leme de fortuna.

As manobras tornaram-se mais complicadas, o governo mais lento, mas nos adaptamos e passamos até a gostar de manobrar com o leme de fortuna. Porém, passados dois dias descobrimos que a “bruxa continuava solta”, o Carvalho ao testar o motor auxiliar verificou que o semieixo patinava louco no flange do reversor, sem transmitir a rotação ao eixo do hélice, teríamos que atracar no Porto de Mindelo na Ilha de São Vicente no Arquipélago de Cabo Verde, sem o motor auxiliar e sem agilidade nas guinadas devido ao leme de fortuna, situação desconfortável até porque o porto era completamente desconhecido.

A solução veio do Sargento Carvalho, paraibano muito safo, reparou que a chaveta do flange tinha sido degolada e sugeriu que fizéssemos um furo trespassando o flange e o semieixo em todo o diâmetro e que passássemos um parafuso de aço à guisa de pino de travamento e uma porca como contrapino. O problema era furar as duas paredes do flange junto com o eixo. Quem vai ao mar… avia-se em terra! Havíamos, sob orientação do Comte Érico, analisado as dificuldades que enfrentaríamos num barco antigo de madeira e nos preparando para os reparos… em madeira, assim dispúnhamos de uma furadeira com rotação muito alta para abrir um furo de diâmetro de 3⁄8 da polegada em aço, um motor gerador Honda a gasolina, um esmeril pequeno, uma morsa e uma broca de aço rápido de 3⁄8 da polegada. Não eram os equipamentos ideais para reparo em aço, mas tornavam estes exequíveis, o jeito era ser paciente, ir furando devagar, ir resfriando para não queimar a broca, quando ela perdia o fio, afiá-la e reiniciar o furo, tomando o máximo cuidado para não quebrar a broca.

Nunca pensei que um curso de Ajustagem Mecânica que havia feito no Senai Roberto Mange de Campinas há mais de 10 anos nos seria tão útil, pois perdi as contas de quantas vezes afiei aquela broca tentando manter intuitivamente o ângulo da ponta em 150°, indicado para aço duro como havia aprendido. Mas conseguimos furar e passar o parafuso, o Carvalho montou tudo, testou e funcionou… As manobras nas águas restritas do porto não seriam somente a vela, contaríamos com o filho mais querido do Carvalho para nos auxiliar. As fotos abaixo mostram a operação:

Reparo do semieixo no convés da esquerda para a direita Comte Érico e Bilola
Reparo do semieixo no convés da esquerda para a direita Comte Érico e Bilola

 

2
Reparo do semieixo no convés da esquerda para a direita Carvalho, Bilola e Comte Érico

Atracamos no Porto de Mindelo, onde efetuamos todos os reparos no sistema de leme e fabricamos uma nova cana de leme muito mais resistente. No final “fizemos do limão azedo uma caipirinha”, pois ganhamos um porto a mais em nossa viagem e tivemos a grata satisfação de conhecer um povo sofrido, mas extremamente hospitaleiro (exceto o Bode que estava impedido a bordo por um atraso em Las Palmas ocasionado por uma linda canária morena de olhos azuis).

Nessa curta estadia no Arquipélago de Cabo Verde o Tamba venceu um concurso de glutonaria, desbancando o mais comilão dos cabo-verdianos, eu aprendi a transformar um furo redondo em quadrado usando métodos rudimentares de forja por martelamento a quente (para fabricar a nova cana do leme numa oficina local), o Doc, o Xulipa e eu pudemos fazer uma das melhores pescarias submarinas de nossas vidas, junto com oficiais da Marinha de Cabo Verde, quando lotamos o barco deles de grandes Xaréus que vinham em cardumes enormes do fundo.

Xulipa pronto para os Xaréus.
Xulipa pronto para os Xaréus.

Passados quase quarenta anos do ocorrido, tendo vivido muito e passado por muitas alegrias e também muitos dissabores, tendo me tornado hidrógrafo tal qual o comandante Érico, tenho comandado navio e dirigido organização militar.

Tendo também, em 1999, já na reserva da Marinha, desenvolvido a UMI SAN empresa especializada em Serviços de Apoio à Navegação e Engenharia, principalmente, hidrografia, sinalização náutica e gerenciamento de obras portuárias e onde a o MAR se faz presente (como em toda minha vida), na razão social, haja vista UMI ser o MAR em japonês (em homenagem a um amigo japonês falecido) e no logotipo onde consta também o Kanji referente a UMI e ondas em simbolismo:

logo umisan

Após todo esse aprendizado, concluo que as lições de liderança e gestão que recebi, vivendo aquelas situações com aquele grande líder são muito superiores a todas as tantas outras obtidas ao longo da minha vida, em curso de MBA e em tantas palestras e seminários de que participei. Detalho abaixo algumas dessas lições:
– “Depois da sopa a solução aparece…” Na literatura para executivos isto é chamado de:
“foco na solução”, “quebrar paradigmas”. E significa que enquanto mantivermos a
cabeça mergulhada no problema, não encontraremos a solução e a empresa nunca terá
um rumo.
– “Não sei para que você comprou isso, mas… tudo bem…” Na literatura para executivos
isto é chamado de: “desenvolver lideranças”, “estimular a iniciativas”. E significa que
iniciativa e liderança são características raras que devem ser estimuladas, caso contrario
a empresa pode ficar à matroca se você faltar.
– “As ânforas precisam ser sacrificadas…” Na literatura para executivos isto é chamado
de: “análise da relação custo x benefício”. E significa que temos que estar preparados
para as perdas se quisermos os ganhos, afinal “não se faz uma omelete sem quebrar os
ovos”.
– “Quem vai ao mar… avia-se em terra!” No jargão de executivos isto é chamado de:
“análise dos riscos e suas medidas mitigadoras”. E significa que em todo empreendimento deve-se analisar devidamente todos os problemas que possam surgir e previamente escolher as ações para soluciona-los, de preferencia com redundâncias.
– “Faça de um limão, uma caipirinha…” Na literatura para executivos isto é chamado de: “buscar tirar vantagem das adversidades” E significa que temos que buscar o lado bom de qualquer problema, mesmo que seja apenas a experiência e os Xaréus que ele traz.
Mas a principal lição que aprendi nessa viagem foi a da força da união. Tivemos sucesso na empreitada, apesar de todas as dificuldades inerentes, porque estávamos unidos, foi como se todos nós, o comandante, o imediato, os guarda marinha, o sargento e o marinheiro formássemos um corpo único com o nosso velho barco, todos trabalhando duro para o sucesso de todos. Sempre o líder tem um papel preponderante na busca da união da equipe e para obtê-la ele precisa ter:

– Inteligência para perceber e entender as potencialidades de cada elemento;
– Humildade para não tentar prevalecer sempre sobre todos, fazendo-se assim um
agregador;
– Iniciativa para propor soluções e também para entender e estimular as iniciativas de
cada elemento, na busca do bem comum;
– Bom Senso para limitar os excessos prejudiciais da iniciativa de cada elemento,
inclusive os excessos da sua inciativa;
– Conhecimento Técnico do campo onde atua a equipe;
– Capacidade de Delegar competência e liberdade para os elementos atuarem;
– Carisma para ser ouvido e considerado; e
– Transparência para se manter acreditado.
Com todas essas qualidades o nosso querido e saudoso Comte Érico foi agraciado por Deus e isso contribuiu imensamente para a nossa união, para o nosso sucesso e para a camaradagem que perdura entre nós até hoje.
Finalizando, enfatizo que assim como a união foi essencial para o sucesso de nossa empreitada no Atlântico, ela é também o fator primordial para o sucesso de todo projeto empresarial. E para obtê-la é necessário altruísmo na liderança, abdicando de vantagens pessoais mesquinhas para o sucesso e a perenização da empresa. Afinal:

“É melhor dividir um pote de mel do que comer sozinho um barril de fel”
Airton Antonio Rodrigues

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